3 de janeiro de 2025

SECOS & MOLHADOS - SECOS & MOLHADOS (1973)

 


Secos & Molhados é o álbum de estreia da banda brasileira de mesmo nome, evidentemente, o Secos & Molhados. Seu lançamento oficial aconteceu em agosto de 1973, através do selo Continental. A produção ficou a cargo de Moracy do Val.


Vamos falar sobre os antecedentes da formação do grupo para depois se fazer o faixa a faixa. A parte histórica deste texto é retirada, em grande parte sem modificação, do texto de André Bernardo, que pode ser lido na íntegra aqui.





Origens


A ideia de fundar o Secos & Molhados partiu de João Ricardo, o qual era português de Arcozelo, e que chegou ao Brasil no dia 28 de março de 1964, acompanhado da família – seu pai, o jornalista João Apolinário (1924-1988), fugia da ditadura salazarista.


São de autoria de Apolinário cinco letras do Secos & Molhados: Amor e Primavera nos Dentes, do primeiro álbum da banda, lançado em 1973, e Flores Astrais, Voo e Angústia, do segundo, de 1974.


No Brasil, pai e filho trabalharam em redações de jornais: o primeiro deu plantão no Última Hora e o segundo se revezou entre três empregos: no Última Hora, pela manhã; na TV Globo, à tarde; e na TV Record; à noite.


Cinco anos depois de desembarcar no Brasil, João conheceu Gerson, um jovem estudante de Arquitetura que morava na mesma rua, a Alameda Ribeirão Preto, na Bela Vista, e logo ficaram amigos. Juntos, compuseram a primeira canção do Secos & Molhados: El Rey.


O grupo, aliás, teve incontáveis formações. A mais famosa delas, com Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad, durou apenas dois anos: de 1973 a 1974.


Certa manhã de 1971, João estava em Ubatuba (SP), curtindo as férias, quando se deparou com o letreiro de um velho armazém. Pensativo, perguntou aos amigos se Secos & Molhados daria um bom nome a uma banda de rock. Todos riram. Logo, teve a certeza que sim.


A formação original, de 1971, era composta por João Ricardo, no violão de doze cordas e na gaita; Fred, na percussão; e Antônio Carlos de Lima, nos vocais, e chegou a se apresentar no Kurtisso Negro, uma boate em São Paulo. Quando o vocalista pediu para sair, João saiu à procura de um novo cantor.


João Ricardo



Foi a cantora Luhli quem sugeriu um tal de Ney de Souza Pereira, no Rio de Janeiro. Luhli é autora de três letras do Secos & Molhados: O Vira e Fala, do primeiro disco, e Toada & Rock & Mambo & Tango & Etc, do segundo.


Ney Matogrosso


João e Gerson viajaram até o Rio só para conhecer Ney, um jovem ator hippie que fazia artesanato em couro. Em poucas horas, viraram amigos de infância. Em janeiro de 1972, já em São Paulo, começaram a ensaiar o repertório do primeiro disco.


Enquanto Ney assumia o papel de principal cantor do grupo com seu timbre agudo, João e Gerson se revezavam nos vocais de apoio e também nos violões de seis e doze cordas.


O primeiro show do Secos & Molhados com a nova formação aconteceu na Casa de Badalação e Tédio, do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, no dia 10 de dezembro de 1972. João chegou a sugerir que eles subissem ao palco usando boinas como se fossem guerrilheiros, mas Ney e Gerson não aprovaram a ideia.


No ano seguinte, João conheceu duas figuras importantes para o sucesso do grupo: o jornalista Moracy do Val, em janeiro de 1973, e o fotógrafo Ary Brandi, em novembro.


Como empresário, Moracy do Val realizou duas proezas: fechou contrato com a Continental – antes dele, o grupo havia recebido recusas da EMI-Odeon, Phonogram e RCA Victor – e agendou shows pelo Brasil inteiro, e até duas apresentações no México, em junho de 1974, para o lançamento do disco Secos y Mojados.


À época, o que o grupo ganhava era dividido em quatro partes iguais: 25% para João, Ney, Gerson e Moracy.


Ney Matogrosso



Já Ary Brandi tornou-se o fotógrafo oficial do Secos & Molhados. Fotografava Ney, João e Gerson nos quartos de hotéis, nos estúdios de gravação, nos camarins dos ginásios…


Primeiro álbum


O primeiro álbum da banda, intitulado simplesmente de Secos & Molhados, foi gravado em apenas 15 dias no Estúdio Prova, na capital paulistana, entre 23 de maio e 8 de junho de 1973.


Além do trio principal, contou com o baixista Willy Verdaguer, o pianista Emílio Carrera, o guitarrista John Flavin, o flautista Sérgio Rosadas e o baterista Marcelo Frias. É de Marcelo, aliás, a quarta cabeça da capa do disco. A princípio, ele topou fazer parte do grupo, mas, depois, preferiu continuar como músico contratado.


Quem também participou da gravação do LP foi o cantor e compositor Zé Rodrix. Tocou, entre outros instrumentos, sanfona em O Vira e sintetizador em Fala.


Willy, Emílio, John e Marcelo tocavam no espetáculo A Viagem, uma adaptação de Carlos Queiroz Telles para Os Lusíadas, do poeta português Luís de Camões. Um dia, Ney Matogrosso, um dos 72 figurantes do musical, convidou a trupe para assistir ao show do Secos & Molhados. “Nosso som tinha atitude”, orgulha-se Emílio.


Gerson Conrad



O repertório do álbum de estreia da banda trazia versões musicadas de grandes nomes da literatura brasileira, como Vinícius de Moraes (Rosa de Hiroshima), Manuel Bandeira (Rondó do Capitão), Cassiano Ricardo (Prece Cósmica e As Andorinhas) e Solano Trindade (Mulher Barriguda).


A capa


Terminada a gravação, a próxima etapa seria fazer a capa do disco. Foi João Apolinário quem sugeriu o nome do fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues. Os dois foram colegas de redação do jornal Última Hora.


Convite aceito, Antônio Carlos logo se lembrou de outra foto que fizera não havia muito tempo para um ensaio da revista Fotoptica. Nela, sua mulher, a modelo Ceni Câmara, aparece com a cabeça sobre um prato de papelão prateado. E sugeriu fazer algo parecido para a capa do disco.


Os integrantes do grupo estranharam a proposta, mas, logo em seguida, mudaram de ideia. Menos Marcelo Frias, o baterista, que se recusou a pintar o rosto. “Sou músico, não palhaço”, teria reclamado, segundo o jornalista Julio Maria em Ney Matogrosso – A Biografia (Cia das Letras).


Numa noite gelada de junho de 1973, Antônio Carlos montou o cenário em seu estúdio no Jardim Europa e, para produzir a foto, comprou, entre outros ingredientes, pão, cebola, vinho, linguiça e azeite.


Levamos uma noite inteira para fazer a foto da capa do disco”, relata João Ricardo em um vídeo no canal do Secos & Molhados no YouTube. “Fazia muito calor em cima, por causa dos holofotes, e muito frio em baixo, porque estávamos sentados em tijolos”.


Entre um show e outro no Teatro Itália, o Secos & Molhados foi convidado a gravar dois videoclipes para o Fantástico, da TV Globo. As músicas escolhidas por Luís Carlos Miéle e Ronaldo Bôscoli, os responsáveis pelos quadros musicais do programa, foram Sangue Latino e O Vira.


Bem, eles não chegaram a ouvir as músicas. No dia combinado, tomaram um porre daqueles. Mas, durante uma reunião com Augusto César Vannucci, usaram como critério de seleção a capa do disco. “Quais músicas?”, quis saber o diretor. “As duas primeiras do lado A”, arriscaram. Para sorte deles, Vannucci aprovou a indicação.


Vamos às faixas:


SANGUE LATINO


Um grande clássico nacional abre o disco: “Sangue Latino”, com um toque bucólico e uma atuação vocal impecável de Ney.


A letra fala sobre liberdade:


E o que me importa é não estar vencido

Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos

Meu sangue latino

Minha alma cativa


O VIRA


Outro clássico é “O Vira”. Com uma pegada rockabilly, a canção é contagiante.


A letra é uma elegia homossexual:


Vira, vira, vira

Vira, vira, vira homem, vira, vira

Vira, vira, lobisomen

Vira, vira, vira

Vira, vira, vira homem, vira, vira


O PATRÃO NOSSO DE CADA DIA


Outra atuação vocal lindíssima de Ney, em uma canção predominantemente acústica. As flautas são outro destaque.


A letra faz uma crítica a relações de trabalho:


O patrão nosso

De cada dia

Dia após dia


AMOR


Amor” traz um rock classudo, inspirado no Rock britânico dos anos 1960.


A letra é muito metafórica:


Na simples e suave coisa

Suave coisa nenhuma

Suave coisa nenhuma


PRIMAVERA NOS DENTES


O toque bluesy de “Primavera nos Dentes” é sensacional, uma das melhores do disco.


A letra é contra a ditadura:


Quem tem consciência para ter coragem

Quem tem a força de saber que existe

E no centro da própria engrenagem

Inventa a contra mola que resiste


ASSIM ASSADO


Assim Assado” conta com uma guitarra cortando a canção, sendo uma proposta mais experimental.


A letra é uma crítica ao conservadorismo:


São duas horas da madrugada de um dia assim

Um velho anda de terno velho assim, assim

Quando aparece o Guarda Belo

Quando aparece o Guarda Belo

É posto em cena fazendo cena, um treco assim

Bem apontado ao nariz chato, assim, assim

Quando aparece a cor do velho

Quando aparece a cor do velho


MULHER BARRIGUDA


Mulher Barriguda” é mais um ótimo Blues Rock.


A letra é bem simples:


Haverá guerra ainda?

Tomara que não

Mulher barriguda

Tomara que não





EL REY


Baseada no violão, esta música é curtinha, mas interessante.


A letra é uma referência ao rei de Portugal, Manuel I:


Eu vi El Rey andar de quatro,

de quatro patas reluzentes.

E quatrocentas mortes…


ROSA DE HIROSHIMA


Outro grande clássico nacional do disco é “Rosa de Hiroshima”. Os vocais de Ney são totalmente surreais.


A letra é uma mensagem antiguerra:


Pensem nas mulheres

Rotas alteradas

Pensem nas feridas

Como rosas cálidas


PRECE CÓSMICA


Prece Cósmica” me lembrou algumas passagens do Jethro Tull: e isso, saibam, é um senhor elogio.


A letra é um desejo:


Que do bolso de cada um dos quatro

Como num teatro voem pombas

Pombas brancas e amanheça


RONDÓ DO CAPITÃO


Boa canção, com uma profunda influência folk.


A letra é um poema de Manoel Bandeira:


Bão balalão,

Senhor capitão.

Tirai este peso

Do meu coração.


AS ANDORINHAS


Música curtinha, com apenas 60 segundos.


A letra é uma declamação poética:


Nos fios tensos

Da pauta de metal

As andorinhas gritam

Por falta de uma clave de sol


FALA


Fala” é uma balada belíssima, tocante, suave e, ao mesmo tempo, envolvente.


A letra é belíssima:


Se você disser

Tudo o que quiser

Então eu escuto


Considerações


A Continental não botou muita fé no grupo. Tanto que mandou imprimir apenas 1, 5 mil cópias. Mal sabiam os executivos da gravadora que aquela tiragem não duraria nem 10 dias. Logo, tiveram que produzir mais e mais discos: em 60 dias, o Secos & Molhados vendeu 250 mil cópias. Em três meses, 350 mil e, em sete, quase 800 mil.


Com a crise do Petróleo, a Continental precisou derreter os discos encalhados de outros artistas para fabricar vinis. Em um ano, o Secos & Molhados vendeu, segundo estimativas, 1 milhão de cópias e colecionou discos de ouro, platina e diamante. Em 1997, com o relançamento do LP em CD, foram mais 250 mil cópias vendidas.


As letras “políticas e contundentes”, nas palavras de Miguel de Almeida, passaram despercebidas pelos militares. Mas, o visual andrógino do grupo, e a dança provocativa de Ney Matogrosso, não.


Volta e meia, eu botava a cara para fora da janela e via dois agentes à paisana dentro de um Dodge Dart com um binóculo”, recorda Gerson. Não foi o único. Ney chegou a receber cartas anônimas com ameaças de morte. Mas não se intimidou.


Com o disco tocando em todas as rádios, o grupo caiu na estrada. Percorreram diversas capitais como Rio, Salvador e Porto Alegre. “Tínhamos um Galaxie Landau”, recorda Gerson, referindo-se ao maior e mais luxuoso carro da época. “Viajávamos sempre os quatro, revezando a direção.”


Logo no início, tentaram proibir alguns shows, mas não conseguiram. “Os netos dos generais adoravam o Secos & Molhados”, explica Moracy. Em Santo André (SP), um juiz tentou proibir uma apresentação, mas o neto não deixou. “Quando você conquista a criança, conquista a família inteira”, completa.


O Vira caiu nas graças do público – do netinho à avó. Foi tocada em festa de aniversário e baile de Carnaval. Se o Secos & Molhados conquistou a garotada pelo aspecto lúdico, atraiu a atenção da mulherada pelo lado sensual.


O grupo fazia shows de terça a domingo – às vezes, até mais de um por dia. Tirava a segunda para descansar. Certa ocasião, João convidou Gerson para ir ao Shopping Iguatemi, em São Paulo. Queria prestigiar a inauguração da loja de discos de um amigo. Chegar lá foi fácil; difícil foi sair. Mesmo de cara limpa, foram reconhecidos. A multidão cercou a loja e ameaçou invadir. “Fomos resgatados pelos bombeiros”, recorda.


O segundo álbum, Secos & Molhados 2, seria lançado em 1974.





Formação:

Ney Matogrosso – vocal

João Ricardo – violões de 6 e 12 cordas, harmônica de boca e vocal

Gérson Conrad – violões de 6 e 12 cordas e vocal

Músicos convidados:

Marcelo Frias – bateria e percussão

Sérgio Rosadas – flauta transversal e flauta de bambu

John Flavin – guitarra elétrica e violão de 12 cordas

Zé Rodrix – piano, ocarina, acordeão e sintetizador

Willy Verdaguer – contrabaixo elétrico

Emilio Carrera – piano


Faixas:

01. Sangue Latino (Ricardo/P. Mendonça) - 2:07

02. O Vira (Ricardo/Luhli) - 2:12

03. O Patrão Nosso de Cada Dia (Ricardo) - 3:19

04. Amor (Ricardo/J. Apolinário) - 2:14

05. Primavera nos Dentes (Ricardo/J. Apolinário) - 4:50

06. Assim Assado (Ricardo) - 2:58

07. Mulher Barriguda (Ricardo/S. Trindade) - 2:35

08. El Rey (Conrad/Ricardo) - 0:58

09. Rosa de Hiroshima (Conrad/V. Moraes) - 2:00

10. Prece Cósmica (Ricardo/C. Ricardo) - 1:57

11. Rondó do Capitão (Ricardo/M. Bandeira) - 1:01

12. As Andorinhas (Ricardo/C. Ricardo) - 0:58

13. Fala (Ricardo/Luhli) – 3:13


Letras:

Para o conteúdo completo das letras, recomenda-se o acesso a:

https://www.letras.mus.br/secos-molhados/


Opinião do Blog:

A assombrosa estreia autointitulada do grupo Secos & Molhados é, na minha humilde opinião, um dos discos mais impressionantes da música brasileira.


Verdade seja dita, eu não sou um grande ouvinte de canções em português. Meu trabalho na Internet (mais de 13 anos do Blog e pouco mais de 2 no Youtube) é voltado para o Rock Internacional.


Porém, é impossível não se render a um trabalho como Secos & Molhados. A ideia de musicar poemas de grandes nomes da literatura funciona porque os músicos que compõem a obra são excelentes: os violões de João Ricardo e Gerson e a voz surreal de Ney Matogrosso, com interpretações históricas. Claro, deve-se mencionar os músicos convidados, todos muito competentes.


Secos & Molhados é sim um álbum de Rock, muitas vezes com faixas mais elétricas (“Primavera nos Dentes”), porém, em outras o lado Folk é mais presente (“O Patrão Nosso de Cada Dia”). O que as une é a inegável qualidade das composições com arranjos preciosos e profunda inspiração.


Clássicos não apenas do Rock nacional, mas da MPB em geral, estão aqui e impressionam: “Sangue Latino”, “O Vira”, “Rosa de Hiroshima” e a lindíssima “Fala”. Entretanto, minhas preferidas são faixas menos conhecidas (ao menos por mim): “Primavera nos Dentes” e “Mulher Barriguda”, ambas entre as mais pesadas do disco.


Enfim, foram quase 14 anos para que um disco em português aparecesse por aqui, mas foi justíssima esta presença. Do pouco que conheço, o disco Secos & Molhados é um dos melhores que ouvi na nossa língua pátria.

0 Comentários:

Postar um comentário